domingo, 23 de maio de 2010
Visitar-lhe-ei.
segunda-feira, 17 de maio de 2010
Moldura do fluido
Parei para olhar a janela de um ônibus. Percebi quanto tempo passo nesse transporte dito desagradável, e reconhecido por mim como desagradável, e resolvi parar para olhar. Desligar o i-pod, tirar os olhos do livro... Desentorpecer.
A surpresa que tive foi um momento inspirador. Nem mesmo imaginava as coisas que podemos ver por aquela singela janelinha. Aquela de repente vista como a de um mundo desconhecido, cheio de pessoas de todos os tipos, interessantes, diferentes... Elas que vivem suas vidas, cada qual com um caminho único, uma personalidade, uma aparência, uma voz, um cheiro, uma história. Olha-las passar foi quase um convite para suas vidas... E de repente ali, naquele momento, olhando aquilo tudo, eu me senti pequena e boba. Insignificante na imensidão que apenas uma cidade pode representar. Quais serão as historias dessas pessoas que passam? Como elas vivem? O que elas pensam? Quase me peguei inventando histórias fantasiosas para cada uma delas... Tentando descobri-las de seu manto distante e desconhecido.
Então, absorta nas imagens que corriam sem serem muito bem analisadas, eu vi... Vi no meio do dia chuvoso, da confusão da cidade, um mendigo sujo, barbudo, e sem aviso: intrigante... Ele se olhava no espelho retrovisor de uma moto parada numa marquise e, no meio de todo caos, no meio da correria alarmante, dos afazeres, das responsabilidades alheias, ele penteava a barba bagunçada e sorria pro espelho como se nada na vida existisse a não ser ele e o seu objetivo fútil.
Despercebido. Um fundo bege para uma cidade figurada por cores vibrantes. E mesmo assim: protagonista. Pelo menos naquele vislumbre de instante. Ator principal da minha vida. Naquele momento, o mendigo se tornou rei, famoso, estrela. E o estranho é perceber que ele nunca saberia disso. Continuaria seu propósito amargo, totalmente ignorante do papel que acabara de governar.
Como ele poderia saber que naquele momento ele mudou o rumo de muitos de meus pensamentos? Aquele símbolo de mediocridade tola, aquela personificação do insucesso, marcando presença. Mostrando-se peça. Integrante.
Difícil aceitar que o comum também afeta. Também comanda, faz parte. Difícil acreditar que um ínfimo pedaço de nada numa multidão influencia. Faz-se ver para àqueles que realmente estão dispostos a olhar, a perceber. Ou até mesmo para àqueles distraídos flutuantes que mesmo não querendo enxergar, enxergam.
Naquele momento, eu quis parar. Quis pentear meu cabelo. Quis não pensar. O que era o caos? Quem eu era? Nada importava, porque tudo era nada. Aquele era um filme parado no tempo, esperando para ser assistido. Esperando pelo seu momento tocante, pela fala marcante e pela derradeira catarse.
Mas obviamente o segundo passou, o coração bateu, pisquei, uma buzina emergiu do nada que estava instalado. Daquele momento inspirado, daquela história inacabada: mais um insucesso... mais uma vida misteriosamente apagada. E isso é o que se esperaria. Porém, eu não chamaria aquele momento de insucesso... Eu o chamaria de vislumbre. Um sentido a mais. Um paço para o existir. Para o inspirado. O novo e o comum. O belo fundo cinza surpreendente. O cair de uma máscara de um rosto desconhecido e sempre esperado.