domingo, 23 de maio de 2010

Visitar-lhe-ei.

Ciúme (Jealosy - 2003) de Elder Santos (Roteiro Amarrado - Obras de 2001 a 2010)

Declaração de amor via blog.
Interlocução com o texto "Visita" da Thatiana Caputo.

Abre os olhos... que eu lhe olho.
Eu espero sempre estar lá.
Seja a unidade sólida de de mim que lhe vê tão simplesmente,
tão vulgarmente quanto você me vê...
Seja a imaterialidade maldita de um simulacro de Aline,
que você projeta que lhe vê tão simplesmente,
tão vulgarmente quanto você me vê.....
Eu,
vizinha carente,
venho pedir uma "xícara de você".
Você me oferece:
CAPUTccINA com chantilly,
polvilhado com cacau e canela.
O chantilly não tem gosto amantegado,
mas é mais açucarado que o normal.
Do lado da "xícara de você" biscoitinho de fubá,
só pra dar um "cadinho" de gosto de Minas Gerais.
Fecha os olhos,
que eu lhe olho...
Mesmo que cansada,
desnude,
resignifique.
Faço-lhe companhia.
Acompanho-lhe com a certeza da minha capacidade de afetação.
Aponto,
sorrio,
abraço.
Sussurro gélida ao seu ouvido,
lhe digo o "meu tudo" que sempre é nada.
A mesma patética história de amizade...
Não venho só por comparecer, ou por obrigação.
Fecha os olhos e descansa,
que eu espero sempre estar aqui.
Cuidando de você...
Benzinho.


segunda-feira, 17 de maio de 2010

Moldura do fluido


Parei para olhar a janela de um ônibus. Percebi quanto tempo passo nesse transporte dito desagradável, e reconhecido por mim como desagradável, e resolvi parar para olhar. Desligar o i-pod, tirar os olhos do livro... Desentorpecer.

A surpresa que tive foi um momento inspirador. Nem mesmo imaginava as coisas que podemos ver por aquela singela janelinha. Aquela de repente vista como a de um mundo desconhecido, cheio de pessoas de todos os tipos, interessantes, diferentes... Elas que vivem suas vidas, cada qual com um caminho único, uma personalidade, uma aparência, uma voz, um cheiro, uma história. Olha-las passar foi quase um convite para suas vidas... E de repente ali, naquele momento, olhando aquilo tudo, eu me senti pequena e boba. Insignificante na imensidão que apenas uma cidade pode representar. Quais serão as historias dessas pessoas que passam? Como elas vivem? O que elas pensam? Quase me peguei inventando histórias fantasiosas para cada uma delas... Tentando descobri-las de seu manto distante e desconhecido.

Então, absorta nas imagens que corriam sem serem muito bem analisadas, eu vi... Vi no meio do dia chuvoso, da confusão da cidade, um mendigo sujo, barbudo, e sem aviso: intrigante... Ele se olhava no espelho retrovisor de uma moto parada numa marquise e, no meio de todo caos, no meio da correria alarmante, dos afazeres, das responsabilidades alheias, ele penteava a barba bagunçada e sorria pro espelho como se nada na vida existisse a não ser ele e o seu objetivo fútil.

Despercebido. Um fundo bege para uma cidade figurada por cores vibrantes. E mesmo assim: protagonista. Pelo menos naquele vislumbre de instante. Ator principal da minha vida. Naquele momento, o mendigo se tornou rei, famoso, estrela. E o estranho é perceber que ele nunca saberia disso. Continuaria seu propósito amargo, totalmente ignorante do papel que acabara de governar.

Como ele poderia saber que naquele momento ele mudou o rumo de muitos de meus pensamentos? Aquele símbolo de mediocridade tola, aquela personificação do insucesso, marcando presença. Mostrando-se peça. Integrante.

Difícil aceitar que o comum também afeta. Também comanda, faz parte. Difícil acreditar que um ínfimo pedaço de nada numa multidão influencia. Faz-se ver para àqueles que realmente estão dispostos a olhar, a perceber. Ou até mesmo para àqueles distraídos flutuantes que mesmo não querendo enxergar, enxergam.

Naquele momento, eu quis parar. Quis pentear meu cabelo. Quis não pensar. O que era o caos? Quem eu era? Nada importava, porque tudo era nada. Aquele era um filme parado no tempo, esperando para ser assistido. Esperando pelo seu momento tocante, pela fala marcante e pela derradeira catarse.

Mas obviamente o segundo passou, o coração bateu, pisquei, uma buzina emergiu do nada que estava instalado. Daquele momento inspirado, daquela história inacabada: mais um insucesso... mais uma vida misteriosamente apagada. E isso é o que se esperaria. Porém, eu não chamaria aquele momento de insucesso... Eu o chamaria de vislumbre. Um sentido a mais. Um paço para o existir. Para o inspirado. O novo e o comum. O belo fundo cinza surpreendente. O cair de uma máscara de um rosto desconhecido e sempre esperado.

quinta-feira, 6 de maio de 2010

Corda bamba.

The last tightrope walker by ~thePetya on DeviantArt


O acordar. Sabe que está para acordar. Sente a presença de tudo que lhe é conhecido a sua volta. Acordar no mesmo quarto. "O travesseiro sempre parece melhor quando você acorda". Aperta o travesseiro. "Tenho mesmo que levantar? Mas eu já estou acordado. Posso dormir de novo se eu ficar aqui parado. Mas eu também não quero dormir. O travesseiro parece melhor quando você acorda. Levanta, vai. Mas pra que? Poxa, levanta. Vai ao médico. Você está enrolando há 2 meses. Mas está bom aqui. O travesseiro parece melhor quando você acorda". Ainda de olhos fechados, sente que o que lhe era conhecido a sua volta vai mudando de forma. O quarto é maior, não, não é um quarto. É cozinha. "O que eu tomo pra café da manhã? Não estou com fome". Um copo d'água, uma maçã. Olhos fechados pra comer a maçã. "A maçã não tem tamanho. Só sei que 'é', porque ela me toca. Ou será que eu que toco nela?" Água. De cima pra baixo. No corpo. Desce, escorre. Olhos fechados. Som de água corrente. Som de natureza. Espuma. Cheiro artificial de natureza. Fim de chuva. Nudez. Olhos fechados para a nudez. "Prefiro não me ver por algum motivo. Minha nudez é mais livre se eu não vejo. Nada toco. Nada me toca, senão o chão abaixo dos pés". Uma torre. Do chão pra cima tudo é céu. Tudo é ar. Exceto o pé. O pé é base, é chão. Panos. Ele põe sobre si diversos panos, junto a uma proteção para a base. Proteção também para os olhos. Óculos escuros. "O que eu acho bom dos óculos escuros é que você pode fechar os olhos enquanto caminha sem que ninguém perceba". Isso lhe dava a sensação de estar em qualquer lugar ou em lugar nenhum. Ao estar em qualquer lugar, vinha a ele uma potência de criação que rasgava o espaço. Era o mesmo, limitado. Mas limitado num lugar qualquer. Do espaço rasgado emergiam sons, cores, luzes, pessoas, imagens. Tudo possível do lado de fora. Possível do lado de fora, com os olhos de dentro. Quando tudo ou qualquer lugar lhe era nada, não havia som, não havia cor. Sensação de um ar seco, um bufão, uma explosão. Potência explosiva. O tudo de dentro quer dominar o nada de fora. "Eu toco o nada. Meu limite não é de fora para dentro. Não são os panos que me prendem. Não é a proteção da base que me impede de tocar o chão." Nudez. Olhos fechados para a nudez. "Eu encosto no pano, ultrapasso. Eu prefiro não ver por algum motivo. Meu tamanho é livre se eu não me vejo, se eu não vejo o limite". Calmo. Passos. Vontade de velocidade. Do chão pra cima tudo é céu. Queda. "Maldito paralelepípedo". Olhos abertos. Óculos quebrados. Sangue quente sai do corpo. Corpo. O limite. O sangue sai do limite. "Pronto, está aqui o meu limite. Que merda! Como dói". Luz forte, cimento, barulho. Sentiu a transpiração. A luz forte é o Sol. A transpiração sai do limite, como o sangue. As mãos e as nádegas no cimento. "O cimento que me toca". O som. Os ouvidos captam, traduzem, vai ao cérebro. Até o barulho me vem de fora pra dentro. "Porra, que dor". A dor fica bem na fronteira do dentro e do fora. Chegou a conclusão que era um péssimo dia. Não foi ao médico. Não limpou o ferimento. Deitou na cama. "O travesseiro sempre parece melhor quando você você vai deitar. Eu vou pra qualquer lugar ou para lugar nenhum. Levanta de novo, vai. Eu até levantaria, mas eu não quero. Peraí, eu já levantei hoje?"