quinta-feira, 17 de junho de 2010

Coração negro


Quando menos se espera um raio de luz sorrateiro entra pela janela e faz cócegas na face da menina mulher. Ela desperta de um sonho confuso mergulhado na escuridão e ensandecido com um constante silêncio ensurdecedor. O dia que a espera também esta em silêncio, mas esse é de alguma forma diferente, trás consigo uma paz inesperada que por pouco não foi completamente esquecida. Nunca havia pensado que aquele pesadelo acabaria. Aquela imensidão de ruído calado e cortante. Mas de repente é dia, com direito a sol, brisa e por que não um pouco de tímida alegria.

Ficou tanto tempo atada naquele mundo obscurecido que quando levantou parecia atordoada. Espreguiça, tropeça, reflete avariada. Cega abre os olhos pela primeira vez desde o dia em que sem explicação seu sol se apagou. Como quem assiste TV em casa despreocupada e de repente um apagão se instala e no escuro passa-se um segundo até que se descubra o ocorrido. Só que para ela o segundo virou eternidade e seu mundo virou aquele segundo. O segundo sem fim de pesadelo marcante. Daquele que se implora pra acordar, mas que não se acorda. Perdida não sabe se chora ou se grita. Não sabe nem se sorri ou se lamenta se sente raiva ou esperança. Descompassada tudo se mistura e se traduz apenas na certeza de que o desconforto que sente parece não ter lugar, transborda, comprime e machuca sem pausa; não há trégua, não há nem mesmo ar.

Buraco negro te suga a vida até que tudo se misture e exploda em nada. Puxa-te pelo pé, te arrasta formando uma realidade sem escapatória, e o único caminho é o que te conduz involuntariamente até o grande coração negro. Como um imenso imã aquilo te atrai e cega, tudo que era, é esquecido e o que resta é ausência. Falta.

Como conseguir escapar do lugar físico, palpável, real o qual nem mesmo a luz consegue adentrar? Como se esgueirar daquilo que nos impele a não ver? São laços invisíveis, que escorrem pelos dedos quando se tenta apalpar. São nós complexos que se amarram ainda mais cada vez que se tenta liquidá-los. No entanto são tão densos, tão presentes quanto o próprio ar. Esse que falta na tentativa de respirar.

Sufocada.

As sobras são lágrimas. O prato principal: confusão. E pra beber, cansaço. O almoço e o jantar de todos os dias daquele infindável segundo.

Sugada.

O negro parece que puxa e impele tudo ao mesmo tempo. Uma boneca suspensa naquele ar corpóreo, turvo: puro movimento de quietude. Puro instante eternamente fugaz. E a sensação de fracasso. De esforço despendido em vão. Como correr em uma esteira: se corre, corre, corre e não se chega a lugar algum. Se é sugada pelo buraco do não-lugar. Pela esperança de algo, que no seu fim é vácuo.

Abre os olhos de novo e pensa: como foi que sai? Pensa perdida que tudo está claro demais. O silencio de novo. Seria esse mesmo diferente? Fecha os olhos. Descansa. Mais um segundo se passa e está claro. Ainda está claro. Mas está claro demais. A alegria se preocupa. Havia se permitido sorrir exatamente porque algo mudara. Porque o escuro pulou pra luz sem explicação. Porque havia afinal saído do pesadelo do buraco negro. Do coração negro. No entanto olha em volta mais uma vez e constata afinal: claro ainda. Toma fôlego, puxa todo o resto de ar que ainda tinha naquele vislumbre de mudança e sorri irônica. Cega mais uma vez constata: claro demais.